Quando eu era pequena minha casa estava sempre cheia de visitas. Recebíamos tios, primos e amigos que vinham de outras cidades e se hospedavam lá. Dentre estas visitas, uma vinha com mais frequência. Era uma tia, viúva, que estava sempre lá.   

Adorava o ritual de ir com meu pai esperá-la na rodoviária enquanto minha mãe se encarregava de preparar o jantar. Ela chegava com o ônibus das 20h e era sempre a última a desembarcar.  Junto com a sua mala vinham os presentes (geralmente balas) e sua sacola com bordados em andamento. Toda vez que ela nos visitava eu me empolgava para aprender a bordar. 

 Eu devia ter uns 6, 7 anos e minha paciência era proporcional a minha idade. Pouca. Nunca consegui passar da metade de uma tela do tamanho de um caderno de 50 folhas, pequeno. Então minha tia, sob protesto, terminava o bordado em meio a reclamações a respeito da minha falta de persistência. Aliás, ela era especialista em reclamações. Sua habilidade em reclamar e tecer críticas era tão afiada quanto a tesoura que ela usava para desmanchar o meu bordado quando não estava do seu agrado. 

 Mas, a maior crítica era a respeito do “lado avesso” do bordado. Ainda posso ouvi-la dizer: “O lado avesso tem que estar tão bonito e caprichado quanto está o lado direito!” Eu não entendia por que, já que o mesmo ficaria escondido sob uma moldura e ninguém iria ver. E eu me esforçava em caprichar.  

Até hoje não sei bem por quê. Se era para ter a aprovação dela e ter certeza que eu continuaria ganhando as balas ou se era para eu não ter que ouvir suas infinitas críticas. 

Hoje passo longe de bordados. Até porque, além de não ter aprendido a deixar o lado avesso do jeito que ela queria (modéstia à parte, o lado direito até que ficava bem bonitinho) a minha paciência para isso, continua do mesmo tamanho que tinha na minha infância.  

Mas esse tal “lado do avesso” deu muito “pano pra manga”! 

Com o passar do tempo, fui entendendo que “lado do avesso” não era só para bordados. Saiu das telas, linhas e agulhas e passou para outra instância. A instância das emoções. 

Fui percebendo que existiam emoções que eram “bonitas” que podiam e até deveriam ser mostradas. Outras, nem tanto. Estas, “as feias”, deveriam ficar guardadas, escondidas, como o lado do avesso. Ou seja, entendi que as emoções “do avesso” não podiam ser legitimadas, eram feias e tinham que ser escondidas. Se, por acaso apareciam era como se a sua verdadeira identidade fosse descoberta. 

Hoje, olhando para trás, vejo o quanto essa lição da minha tia ficou impregnada em mim, mesmo sem que eu me desse conta. Por muito tempo, tentei manter o “lado do avesso” das minhas emoções tão arrumadas quanto ela queria que fosse o do bordado. Ou melhor: escondido, alinhado, discreto, sem que ninguém pudesse suspeitar que ele existia. 

Acontece que, por mais que a gente se esforce para esconder as imperfeições, elas sempre acabam escapando por alguma fresta. Um olhar, um suspiro mais profundos, uma resposta atravessada em um dia ruim. Porque somos humanos, e o lado do avesso — aquele cheio de fios soltos, nós apertados e pequenas desordens — faz parte da nossa tessitura. 

Por muito tempo, achei que demonstrar tristeza, medo, cansaço ou até mesmo raiva, era sinal de fraqueza. Algo a ser escondido como um bordado malfeito. Mas a vida, com sua paciência infinita (muito maior do que a minha com agulhas e linhas), foi me ensinando que não existe lado direito sem lado avesso. Um não vive sem o outro. 

Hoje, eu entendo que a beleza não está na perfeição do bordado, mas na autenticidade dele. Nos nós que contam uma história, nas imperfeições que mostram o esforço de quem o construiu. E assim também é com a gente. 

Tem dias em que estamos radiantes, alinhados, com as cores vibrantes à mostra. Em outros, somos só o avesso: confusos, cansados, cheios de fios soltos e dúvidas penduradas. E tudo bem. Porque é justamente esse contraste que nos torna reais. 

Aceitar o próprio avesso não significa se conformar com as imperfeições, mas reconhecer que elas fazem parte do processo. É parar de se culpar por sentir demais, ou de menos. É entender que todos nós temos nossos nós, uns mais apertados do que outros, mas todo dignos de respeito e compaixão. 

Quando nos permitimos olhar para dentro sem julgamentos, aceitamos o lado avesso e podemos integrá-lo ao nosso ser, algo bonito acontece. Ficamos mais leves mais verdadeiros e, curiosamente, mais próximos uns dos outros. 

Porque ninguém se conecta de verdade com a perfeição. As pessoas se conectam com aquilo que é humano, falho, vulnerável. Ainda, há sempre quem, ao ver seu avesso exposto, se reconheça nele. E é nessa troca sincera que as relações se aprofundam e os vínculos se fortalecem. 

Por isso, hoje eu te convido a fazer as pazes com seu lado avesso. Não se envergonhe dos seus nós. Ao contrário, olhe para eles com a compaixão que essa parte que compõe a tua história merece. 

A lição que minha tia, com toda sua exigência e críticas afiadas, talvez não soubesse que estava me ensinando, é justamente essa: ninguém quer mostrar o seu lado avesso, mas é ele que sustenta o lado direito. E somente os dois juntos, lado a lado (literalmente!) é que compõem a tapeçaria da vida!  

 Por: Fernanda  Abelin